A remissão freudiana à literatura na fundamentação teórico-conceitual da psicanálise

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da Profª. Drª. Ingrid Vorsatz.

A presente monografia tem como objetivo geral investigar o estatuto da remissão de Sigmund Freud à literatura no que tange a fundamentação teórico-conceitual da psicanálise. Busca-se problematizar a relação entre psicanálise e literatura, identificar e discutir os principais momentos em que Freud recorre à literatura com vistas à elucidação de conceitos e noções da psicanálise, a fim de analisar o estatuto deste recurso freudiano. A metodologia adotada consiste no levantamento bibliográfico e na revisão narrativa de parte da obra freudiana que trate deste recorte, além de artigos e livros de outros autores que se dedicam a explorar esta discussão. No final do século XIX - período considerado pré-psicanalítico - Freud encontrava-se às voltas com os impasses da clínica da histeria. Em 1897, período marcado pelo início de sua autoanálise, Freud se dirige a Fliess através de uma carta, afirmando não mais acreditar em sua neurotica (teoria das neuroses), isto é, na sua teoria da sedução, ao constatar ser impossível que em todos os casos de histeria o pai do(a) paciente seja um perverso, pois, se assim fosse, as perversões deveriam ocorrer em maior escala, de modo que a teoria da sedução não era coerente com os achados a partir de sua prática clínica. Dessa forma, Freud encontra-se diante de um impasse, chegando a confessar não ter ideia de onde situar a etiologia da histeria. Em uma carta a Fliess datada de 15 de outubro de 1897, afirma ter encontrado em sua própria autoanálise e em sua clínica com os pacientes neuróticos a paixão pela mãe e os ciúmes do pai, elementos que já apontam para o conceito de complexo de Édipo. Em 1900, inaugura a psicanálise com a publicação de A interpretação dos sonhos, obra em que recorre à literatura, mais especificamente às obras Édipo rei, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare, para fundamentar o complexo de Édipo, decisivo na constituição do sujeito. Estabelece, assim, uma interlocução com a literatura de modo que esta não caracteriza um expediente meramente ilustrativo ou estético, mas, sim, um recurso para a fundamentação de sua teoria da clínica. Assim, o encontro da psicanálise com a literatura é parte integrante e constitutiva da própria fundamentação da teoria da clínica psicanalítica. Em 1907, em sua análise da novela Gradiva: uma fantasia pompeiana, do escritor alemão Wilhelm Jensen, Freud não hesita em afirmar que o poeta/escritor está à frente do cientista no conhecimento da alma (Seele) humana; anos mais tarde, na carta ao médico e escritor vienense Arthur Schnitzler, afirma encontrar na obra do escritor elementos homólogos aos seus próprios achados clínicos, considerando o referido autor como sendo o seu duplo (Doppelgänger). Destaca-se a importância que Freud atribui à literatura para a psicanálise: ele reconhece seu duplo não em um médico, mas, antes, em um homem de letras. É digno de nota que Freud estabeleça uma interlocução entre psicanálise e literatura, especialmente se levarmos em conta seu contexto científico, demarcado pelo movimento empirista e materialista. Em 1926, com a teoria da clínica psicanalítica consolidada, Freud propõe, no ensaio A questão da análise leiga, aquilo que considera indispensável à formação do psicanalista e, descartando a exigência de uma formação médica, situa a ciência da literatura (Literaturwissenschaft) como um elemento indispensável, legitimando-a como um operador teórico-conceitual ao qual o psicanalista deve recorrer. Destaca-se que antes mesmo da fundação da psicanálise, em uma carta a Fliess em 1897, Freud estabelece uma analogia entre o mecanismo da ficção e o das fantasias histéricas, destacando que o poeta parece ser capaz de construir uma realidade com efeitos reais a partir da imaginação de modo semelhante à realidade engendrada pela fantasia. Em 1908, publica o artigo O poeta e o fantasiar, no qual questiona de onde o poeta extrai os seus temas, estabelecendo uma homologia entre a criação poética e a brincadeira infantil: ambos criam um mundo de fantasia que tem efetividade própria, salientando que o oposto da brincadeira infantil não é a seriedade, mas a realidade. O poeta, de forma semelhante, constrói um mundo de fantasia que leva a sério, por meio de sua criação artística, cuja ferramenta de trabalho também é a palavra. Guardadas as devidas proporções, a literatura se configura como uma práxis cujo substrato é comum à psicanálise: a articulação linguageira. Freud encontra na literatura elementos imprescindíveis à fundamentação de seu novo campo teórico-clínico como o campo da palavra e da linguagem. Psicanalista e poeta, cada um a seu modo, encontram os mesmos achados, compartilhando o mesmo ofício: aquele que a palavra perfaz.

Psicanálise, Literatura, Fundamentação teórico-conceitual