Bright star (Brilho de uma paixão)

Nota sobre o Festival do Rio 2009

“Quem pagará o enterro e as flores se eu (me) morrer de amores?”1

Bright star, would I were stedfast as thou art
Not in lone splendour hung aloft the night
And watching, with eternal lids apart,
Like Nature's patient, sleepless Eremite,
The moving waters at their priestlike task
Of pure ablution round earth's human shores,
Or gazing on the new soft-fallen mask
Of snow upon the mountains and the moors
No - yet still stedfast, still unchangeable,
Pillow'd upon my fair love's ripening breast,
To feel for ever its soft fall and swell,
Awake for ever in a sweet unrest,
Still, still to hear her tender-taken breath,
And so live ever - or else swoon to death.

(John Keats, Bright star)

Bright star (Reino Unido/Austrália/França, 2009) é o título do longa-metragem da cineasta neozelandesa Jane Campion, inspirado na história de John Keats, poeta talentoso e sem recursos, e sua amada Fanny Brawne, legítima representante da upper class britânica.

O amor e sua penúria, suas unhas sujas, suas vestes puídas, sua febre e até mesmo sua hemoptise, sobretudo a poesia, tudo em Keats encanta a aristocrática Miss Brawne. Este encontro inesperado é o que a salva de uma vida frívola, fadada ao cumprimento das convenções rigidamente estabelecidas por sua classe social.

Fanny Brawne propõe a Keats que lhe ensine poesia, quer apreender esta arte, que não domina. Põe-se a ler furiosamente, Homero, Milton, Chaucer; o resultado, de início, é nulo – há alguma coisa que lhe escapa. No entanto, a poesia não é algo sobre o que se possa saber, adverte Keats; é preciso senti-la na carne, experimentá-la com o ser.

A arte poética não serve ao verniz social, como as aulas de dança ou de música. Não se trata de um conhecimento a ser adquirido, está para além de toda a técnica - métrica e rima apenas caracterizam o modo pelo qual ela se declina. Não se deixa capturar e, como Midas, tem o misterioso dom de transformar em ouro tudo aquilo em que toca.

A poesia, sorrateira, penetra entre sonhos e lençóis, na brisa ligeira que faz esvoaçar cortinas e saias, na chuva que cai em gotas fartas e generosas. Na vida pacata de Hampstead, região norte de Londres, a própria natureza, convulsionada pela imisção da poesia, reverbera em tom maior.

A altiva Fanny, fascinada, capitula, assim como ocorre com o sensível Keats diante daquela jovem determinada. Enamorados, já não podem se afastar um do outro. Como na canção, os poetas e os cegos - e também os amantes - podem ver na escuridão. Veem com outros olhos, através de outra luz que não aquela da razão.

“There is a holiness to the heart’s affection”2, Keats interpela seu amigo Brown quando percebe que este apenas se diverte com um flerte leviano, sem consideração pelas consequências, expondo sua amada. Para o poeta o amor é coisa séria, trata-se de um sentimento nobre, que toca o sagrado - e não um simples divertissement, um jogo, ou ainda uma brincadeira sem consequências. Capturados em sua teia, Fanny Brawne e John Keats percebem-se cada vez mais enredados à medida que, inutilmente, se debatem.

Finalmente, rendem-se àquilo que não tem governo nem juízo e que, no limite, é perdição. Mãos que se tocam através de paredes, suspiros que têm a mesma cadência, lábios que roçam folhas de papel impregnando de erotismo as cartas febrilmente trocadas em segredo, eis o repertório amoroso do frágil poeta e de milady, senhora de seu coração.

Vivem uma história de amor intenso e impossível como apenas o século XIX seria capaz de engendrar. Em que outra época se diria “Attachment is a very difficult thing to undo”3 - como pondera uma das personagens desse belo filme - exceto no século que inventou o romantismo e, com ele, uma forma de amar que não sobreviveu ao seu ocaso?

Tornamo-nos pragmáticos, é preciso ganhar a vida, time is money, não há mais tempo para esperar pela chegada de uma carta ou ainda para escrevê-la, para colher flores na primavera, caçar borboletas, admirar a neve cair em flocos tão delicados, bordar um vestido, aprender a tocar um instrumento, aguardar por alguém. Não há mais tempo para a poesia, não há mais tempo.

Tampouco há tempo para as dores de amor. O pesar transformou-se em fraqueza de espírito e já não é de bom-tom fraquejar, lamentar, chorar por um amor não correspondido, por um amor que não veio, por um amor que se foi. Não há mais tempo para enlutar-se por uma perda, não há tempo para o luto, não há lugar para a perda.

Embrutecemos e perdemos, sim, a ternura, a delicadeza e o sentido de nossos atos. Vivemos sob uma lógica que tudo reduz ao cálculo, à contabilidade, somos escravos da falaciosa equação custo/benefício - “afinal, o que eu ganho com isso?”. Habitamos tempos líquidos e espaços virtuais. Tornamo-nos homens e mulheres sem gravidade, sem peso, sem lastro.

Seria preciso que nos dispuséssemos uma vez mais, como disse outro poeta no belo verso ritmado por proparoxítonas - estas sonoras palavras da língua portuguesa -, a “(...) amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.”4

Eis que de repente – não mais que de repente – do interior da sala de cinema sopra um vento inesperado, uma lufada de ar fresco, e vinda de outro tempo, longínquo, desponta esta estrela luminosa a nos lembrar que houve um século em que a palavra era prenhe de poesia, e dizia. Houve um tempo de entrega, arrebatamento e ardor. Houve uma vez o amor.

 

1 Vinicius de Moraes, “A hora íntima” in Novos Poemas, 1950.

2 “Há algo de sagrado no amor/enamoramento” (tradução livre).

3 “O vínculo/a ligação (amoroso/a) é algo muito difícil de desfazer” (tradução livre).

4 Carlos Drummond de Andrade, “Amar” in Claro enigma, 1951.

Jane Campion

Jane Campion

Romance, Drama

França, Reino Unido, Austrália

119 minutos

Cinema, Psicanálise