Freud e a ciência da literatura

Desde A interpretação dos sonhos, obra inaugural de seu novo campo teórico-clínico, Sigmund Freud destaca uma íntima conexão entre psicanálise e literatura, considerando o poeta/criador (Dichter) como um aliado do psicanalista, pois o primeiro testemunharia, em seus escritos, a presença de elementos inconscientes, antecipando o que se revela na clínica psicanalítica. Aonde a psicanálise chega, afirma Freud, um poeta estivera antes. A primeira articulação extensa empreendida por Freud entre os campos psicanalítico e literário foi sua análise da novela Gradiva: uma fantasia pompeiana, do escritor alemão Wilhelm Jensen. Nesta, realiza uma exposição de caráter demonstrativo, destinada a um público leigo. Empreende uma espécie de clínica dos personagens, abordando-os de forma análoga aos seus casos clínicos, de modo a demonstrar, através da análise da obra, os conceitos fundamentais de sua teoria: o inconsciente e o recalque, bem como os sonhos como sendo a via régia de acesso a esta instância psíquica. Freud aponta dois métodos distintos para a investigação da criação de sonhos na literatura: examinar particularmente as criações oníricas de uma única obra, ou analisar os sonhos dos personagens de diversos autores da literatura clássica - o que, a seu ver, seria mais indicado. Ainda que este seja considerado o método mais rigoroso, Freud optará pelo primeiro, nesse caso. Trata-se de priorizar aquilo que é próprio da clínica psicanalítica: o caráter singular do achado (clínico e também literário), a partir do qual Freud declinará o critério de universalidade de sua nova ciência, a psicanálise. Pretendemos destacar que o caminho percorrido por Freud em sua análise da Gradiva concerne ao trabalho clínico. O fazer poético não se confunde com a clínica, não se trata de identificar o poeta ao psicanalista. Trata-se de fundamentar o campo conceitual da psicanálise através da ciência da literatura (Literaturwissenchaft).